Você conhece alguém com 89 anos de idade capaz de declarar em alto e bom som que é 100% satisfeito com a vida que leva? Pois irá conhecer agora: a professora aposentada Neuza Guerreiro de Carvalho. Ela é um exemplo de reinvenção, ou melhor, de reinvenções, especialmente a partir dos 70 anos de idade. Conhecer a trajetória de pessoas como ela, que se sentem plenas e gratas pela vida que construíram e com muita energia para seguir adiante, é inspirador, promove ensinamentos e reflexões importantes.
Confira, abaixo, o depoimento que a “vovó Neuza” deu a Cândida Sevilhano, cofundadora e sócia da LLLUM.
Neuza Guerreiro de Carvalho divide sua vida em três fases:
1) Do nascimento a seu casamento (1930 a 1953): se autoconstruiu como pessoa, mais solitária, preparando-se para a próxima fase;
2) 1953 a 2000: construção de sua família, com marido, filhos e netos;
3) Desde 2000: sozinha, mas não solitária: reinventando-se continuamente, preenchendo seu tempo com lucidez, determinação e amor - às pessoas, a seu tempo, à cidade e ao mundo, como veremos a seguir.
Professora de Ciência e Biologia (Colégio Campos Salles/São Paulo, SP), formada em 1951, na antiga Faculdade de Filosofia Ciência e Letras da USP. Mulher curiosa, determinada, estudiosa e focada em diversos interesses, aposentou-se no ensino particular em 1980, aos 50 anos – sua meta era aposentar-se quando ainda estivesse no auge. E seu auge como professora foi a publicação de um rico material sobre o ensino da ciência para Educação Fundamental II: “Programação Dinâmica de Estudos para Ciência”, que chegou a interessar a diversos entes públicos, mas nunca foi, de fato, utilizado, o que é uma pena!
Segredo de longevidade da Dona Neuza: ampliar horizontes
Após aposentar-se, continuou a cultivar (e fazer registros) de seu interesse pela memorialística familiar, além de dedicar-se aos cuidados com netos, marido, sogros e pais. Após o falecimento do marido, em 2000, enquanto supervisionava os cuidados à mãe enferma, começou mais uma de suas muitas reinvenções: passou a transcrever entrevistas gravadas para o Museu da Pessoa. Com a morte da mãe, abriu-se um tempo livre para dedicar-se à atividade que mais aprecia: aprender. Na Universidade Aberta da Terceira Idade, entre 2005 e 2015, fez mais de 50 cursos, aproveitando sua curiosidade para desenvolver uma visão mais universal da cultura: artes visuais, música, literatura etc, que, segundo ela, contribuiu “para aumentar sua autoestima e permitir sua entrada em diversos 'mundos', superando sua timidez e limites acadêmicos”. Para ela, uma questão muito importante na longevidade: ampliar horizontes. E tem mais! Sempre foi uma leitora voraz e, nos cursos de literatura, esse “gosto” foi se sofisticando. Dona Neuza acredita que “ler romances é uma atividade riquíssima, pois permite ao leitor ‘viajar’ por diferentes mundos e realidades e viver outras histórias”.
Ao longo de sua prolífica vida, tem se envolvido em diversos projetos: Resgate de Memória Autobiográfica, que começou em 2004 no Centro de Referência do Cidadão Idoso. E, desde 2015, compõe a grade da Universidade Aberta à Terceira Idade da USP.
Outra paixão de dona Neuza é a cidade de São Paulo, que ama com devoção. Tem colecionado fotos e fatos ao longo destes anos todos e possui registros que remontam à fundação de São Paulo até fotos recentes, como do incêndio do edifício Wilton Paes de Almeida. Em ordem cronológica, já contabiliza 634 slides (em ppt) que têm sido usados em diversas palestras e encontros. Um verdadeiro museu visual sobre São Paulo que guarda com carinho em sua casa. Ainda não sabe como irá “eternizar” esse raro acervo.
Ex e futuros sonhos
Há também projetos e paixões descartadas por considerar que não compensam (dada a morosidade dos poderes públicos e dificuldades encontradas) investir suas energias. Um deles é a preservação da “Figueira da Glete” como patrimônio histórico de SP– uma árvore centenária que fica no antigo pátio da FFCL/USP, na Alameda Glete, e que foi um marco dos estudantes nos anos 40 e 50. Outro projeto do qual Dona Neuza “desistiu por considerar que atenderia apenas 0,43% dos cidadãos paulistanos”: vantagens e prioridades aos cidadãos de 80+. Queria gratuidade em eventos culturais (como teatros e concertos) e aquisição de livros em livrarias.
Dona Neuza tem muito orgulho de sua trajetória e suas diversas reinvenções ao longo de sua vida. E continua sonhando. Gostaria de mobilizar os proprietários dos shopping centers a seguirem o exemplo do Shopping Eldorado, que criou uma cobertura verde. Além de um projeto de prevenção a infecções urinárias, direcionado ao público feminino (cartazes simples a serem colocados em banheiros públicos, orientando mulheres a “urinarem sem ansiedade e mais devagar”).
Seu sonho derradeiro, já devidamente negociado, a ser implementado após sua morte: doação de seu corpo para o ICB (Instituto de Ciências Biológicas da USP) e de seu encéfalo à Faculdade de Medicina da USP. Sem enterro e nem velório.
Sente-se 100% satisfeita com seu momento atual, pela autonomia e independência obtida, apesar de alguns apertos financeiros. Com uma vida rica e enriquecedora aos que a rodeiam, Dona Neuza, cidadã paulistana e cidadã do mundo, constrói um legado não só aos filhos e netos mas a todos que a conhecem.
Admirável a história de vida desta Sra. vovó Neuza. Eu deixo de ser um "pecador" por ter "inveja" dela, e me considerar um fã que a conhece, mas não sabia da grandiosidade e motivadora que ela é.